CRÉDITO N°1-7 – Uma mala dá a volta ao mundo
por Sylwia Lysko, agosto de 2008.
Mesmo que à primeira vista se pareça com um Ready Made, ela não é uma mala comum. Este objeto, com a inscrição que se vê de longe: CRÉDITO – do latim credere, “acreditar”, e creditum, “o confiado em boa fé”, é um convite à ação. Não é a primeira vez que o artista suíço Johannes Burr (*1972) faz uma pesquisa de campo performática convertendo pessoas comuns em atores e até em diretores de suas vídeo-performances. Equipado com a mala de crédito, JB quer emanar confiança, como um banqueiro, quando é o momento da entrega da mala para as mãos de um beneficiado digno. No caso, o conteúdo da mala não é dinheiro ou ações, mas sim tudo o que é preciso para a realização de uma filmagem: uma pequena câmera, fitas de vídeo, um tripé e instruções de uso, complementado pelo formulário do contrato e um envelope pré franqueado para o envio da fita gravada. Tudo está fixado na forma de contrato, com aspecto legal. O acordo escrito serve como segurança para o equipamento, para a proteção do artista e de sua idéia e, ao mesmo tempo, enfatiza a responsabilidade do beneficiado.
Paralelamente ao âmbito contratual, JB dá instruções do conteúdo: o beneficiado tem um prazo de sete dias para gravar um vídeo de 30 minutos e precisa cumprir quatro tarefas:
- Filmar junto com o seu credor uma cena;
- Responder às seguintes perguntas: Qual é o seu nome? Qual é a sua idade? O que você faz ou, qual é a sua profissão neste momento? O que é arte para você?
- Filmar um lugar.
- Depois do prazo de sete dias, passar a mala para um novo beneficiado de sua escolha, explicar tudo e realizar uma filmagem junto com ele, repetindo a primeira tarefa.
As gravações editadas num FilmeEmRede se mostram como um interessante olhar em mundos privados. De maneira surpreendentemente rápida se conhece o outro. Em poucas cenas já se delineia um quadro da sua personalidade, sua criatividade e perspectivas individuais, que vai ficando cada vez mais nítido. Os modos de trabalho variam de uma descrição quotidiana num estilo de documentário (moradia, trabalho, lazer) a diálogos encenados e filmagens experimentais lúdicas, algumas colocadas timidamente em cena, outras visando uma estética cinematográfica profissional. O sentido é sempre se colocar em cena com a câmera de vídeo, acostumar-se com o próprio olhar e o olhar do outro ou se reinventar através destes olhares. Não importa se esta encenação do quotidiano acontece consciente ou inconscientemente, se o beneficiado se coloca na frente ou atrás da câmera, diante da onipresença do meio de comunicação, cada um se serve da linguagem do meio com maior ou menor competência.
Cada FilmeEmRede é assim um resultado cinematográfico de sete beneficiados. Depois de 49 dias (sete vezes sete dias) e 210 minutos gravados (sete vezes 30 minutos) finaliza-se. A circulação construída sobre o significativo número sete[1] é interrompida e a mala de crédito é enviada de volta pelo sétimo e último beneficiado a JB, respectivamente, ao Banco Credor.
Cooperação e coprodução: O desaparecimento do autor singular
Como um personagem de romance, que é libertado, JB deixa seu protagonista livre para agir. Com apenas algumas condições, ele incentiva a sua criatividade e entrega ao seu protagonista a direção de seu próprio curta-metragem.
JB, na verdade o “autor” da ideia do FilmeEmRede, se torna “promotor” e “iniciador” do projeto de vídeo. Através da confiança e da entrega da idéia a terceiros, que serão tanto protagonistas quanto autores com responsabilidade própria, tornando assim desnecessária a pergunta sobre a verdadeira autoria do conceito. No processo da circulação, cada participante será “promotor” e “autor” que, no sentido do verbo em Latim “augere”, fará “crescer” e “aumentar” a ideia do FilmeEmRede. JB se coloca em segundo plano como artista e multiplica sua ideia através de outras pessoas, atores independentes. “O autor da obra não se evapora em éter, mas sim emerge novamente numa forma condensada como um autor plural, como um multi-autor em sua obra artística. No processo de trabalho a obra ganha não apenas sua forma, mas também seu sentido e sua realidade.”[2] Como um personagem de romance, que é libertado, JB deixa seu protagonista livre para agir. Com apenas algumas condições, ele incentiva a sua criatividade e entrega ao seu protagonista, apesar do limite legal, a direção de seu próprio curta-metragem. Depois da circulação de sete vezes sete dias, JB reúne as autorias individuais ou as “realidades subjetivas”[3] em um FilmeEmRede e se permite fazer mudanças sutis.[4]
JB não dirige o filme sozinho. Para que a sua ideia funcione e o trabalho realmente circule, seguindo o “conceito de uma autoria coletiva”[5], ele depende do outro. Neste momento o outro não se depara mais com o artista no papel de espectador, mas sim como “co-autor”, que possui a autoridade de ser responsável pelo curso e pela forma de produção de seu trabalho. Este desaparecimento do autor por escolha própria se entende no sentido de Michel Foucault “(…) a diminuição da autoridade artística e, daí então, a resultante relatividade do pensamento criador (…).”[6] O resultado, os sete vezes 30 minutos de filme gravados, pode também ir em contradição ao propósito do autor, que precisa contar com a possibilidade de perda do controle. Depois que a mala deixa suas mãos, JB não pode mais influenciar na execução e no sucesso do projeto. E, realmente, ele só intervém quando não ouve mais nada sobre a sua mala. “Então é claro que procuro reconstruir a corrente […] para saber onde a mala está.” (JB)
A função do autor diminui na sua amplitude conforme o papel dos receptores for avaliado e ativado. Esta função vai cada vez mais na direção de um “tradutor” ou “mediador”, que “(…) cria percepções de contexto novas e incomuns e com isso […] oferece algo novo e incomum para pensar.”[7]
Tornar dinamicamente visível a teia das relações sociais
O projeto de vídeo de JB é uma constante oportunidade de comunicação, um convite para uma ação criadora, apela para nossa confiança e capacidade de motivação do indivíduo em manter o projeto CRÉDITO em andamento. Para que se possa surgir novas ideias comuns, é preciso que cada realização de vídeo seja inserida numa relação. Este relacionamento se torna uma circulação dinâmica com um final em aberto. “Este tipo de participação baseia-se em comunicação e dedicação. Comunicar significa se abrir, ceder-se de maneira generosa à franqueza e tornar-se permeável.”[8] Cada FilmeEmRede surge assim de um encontro temporário de várias pessoas, num tempo e num esforço imaginativo comum levado a um bom termo. O filme se torna uma rede de relacionamentos sociais, apoiados na amizade, nos conhecidos, nos rápidos encontros e na vontade de se tornarem ativos/criativos.
Esta estratégia artística não tem como objetivo um resultado definitivo, mas sim a própria ação, que é interpretada como arte.
Os beneficiados são parte de um “experimento dentro do contexto artístico” (JB), uma ação artística cujo fim ninguém conhece. Assim, as contribuições em vídeo do projeto CRÉDITO dão um importante passo pelo YouTube e outros fóruns virtuais ou redes, pois, como parte de uma ação artística, os trabalhos de vídeos individuais, este extremo íntimo-pessoal, que não se é e não se deve ser excluído, destacam-se imediatamente sobre todas as demais conhecidas e aqui excluídas estéticas de homevideo. Esta estratégia artística, em vários aspectos vinculada ao processo artístico dos anos 60, não tem como objetivo um resultado definitivo, mas sim a própria ação, que é interpretada como arte. A fita de vídeo documenta a encenação. E apesar do contexto determinado, JB não exclui a espontaneidade e o acaso, ao contrário, estes são parte e o desejado motor da ação do beneficiado.
Originada na participação, a rede de relações dos beneficiados na qual JB define o ponto de ligação, tem seu fundamento na confiança mútua. Através das conclusões de tarefas em conjunto os beneficiados e seus co-atores se conhecem numa nova situação. Já nos anos 60 a estética da obra se move predominantemente para longe da obra e em direção à ação, para o evento, o jogo e à encenação (performance, happening, body art). Bem no espírito da ideia do Movimento Fluxus, as performances de vídeo-arte de JB se movem fluidamente entre a vida e a arte, desaparecendo o limite entre artista e público.
Aqui também a atenção é voltada para o despercebido; o imperceptível, ações e rotinas diárias do beneficiado se transformam em performances artísticas de Fluxus. Não por menos, as ações do CRÉDITO seguem um entendimento artístico universal e os beneficiados à máxima de Joseph Beuys: “Todo ser humano é um artista.” Com a resposta à pergunta “O que é arte para você?”, o conceito quase unânime de arte dos participantes surpreende. Para a maioria, a arte não é um quadro ou uma escultura, mais do que isto, ela é uma visão positiva da vida e está localizada no meio dela, um dom ou um gesto humano. Assim o beneficiado usa seus talentos para uma ação criativa e para “construir” o surgimento de um, por assim dizer, “filmeplástico social”, orientando-se em Emmett Willians: “a vida é uma obra de arte, e a obra de arte é a vida”.[9]
A consciência de que são parte de uma ação artística provoca diferentes reações nos participantes. Como indivíduos experientes e conscientes da mídia acabam por se estilizarem em uma figura artística, lançam mão de técnicas de filmagem para descrever suas vidas de uma maneira original. Ou escolhem um estilo de documentário, com a consciência de verem uma parte da própria história ser eternizada num contexto maior (num “âmbito artístico digno”). Como parte de uma ação artística, transformar-se a si mesmos em obra de arte, através do próprio “Input” criativo experimentar até uma dupla revalorização. E com isso as tarefas se cumprem já em mente e a pergunta “O que é arte para mim?” é respondida. Talvez esses já sejam um elo da corrente, um figurante por acaso ou um participante consciente no próximo capítulo do CRÉDITO, porque de acordo com o fenômeno do mundo pequeno[10] e segundo o “princípio básico da rede de relacionamento social”[11] cada um conhece cada um através de 6,6 ou arredondando, 7 cantos.
Do crédito à doação: a confiança como ponte para a ‘arte absoluta’ (Yves Klein)
Os dois primeiros FilmesEmRede se passam em Berlim, lugar onde o artista vive. De uma maneira natural se conhece o beneficiado e a cidade com sua estética especial. Duas outras circulações de crédito têm seu ponto de partida numa pequena cidade na Alemanha ocidental e num alojamento para pessoas que esperam visto de permanência como exilados. Para enviar a mala numa viagem além das fronteiras da Alemanha, estão previstos dois outros pontos de partida, no Brasil e na Polônia. Da mesma maneira que antes, Timm Ulrich lançou um texto para uma viagem através do mundo, a mala de JB será levada da mesma maneira para uma circulação global. A adequação intercultural da mala de crédito será desta maneira ainda mais favorecida, já que sua natureza vai além das fronteiras linguísticas e monetárias. Afinal o “fluxo de crédito” baseia-se em confiança e o pagamento é a própria criatividade.
Nisto JB ironiza também em grande parte os bancos per se. Como um crédito bancário normal, é entregue ao beneficiado uma mala de crédito por um prazo específico, como uma forma de crédito de mercadorias. A ambiguidade do termo, que primeiramente se associa a um crédito bancário comum, brinca, num certo aspecto, com o lado positivo de um crédito bancário real. E como num banco, o projeto CRÉDITO também tem a ver com confiança. Geralmente num crédito de mercadorias a mercadoria a ser retornada é equivalente à mercadoria creditada. Já que o beneficiado não é obrigado a devolver a própria mercadoria que ele recebeu, ele pode não apenas usá-la, mas também fazer com ela o que quiser. “Com freqüência o crédito é remunerado, o beneficiado pagará assim juros, juntamente com a devolução do objeto creditado.”[12]
O equivalente justo é apenas o FilmeEmRede, um impagável ideal valor adicionável em experiência, em um próprio trabalho criativo feito em conjunto.
De acordo com as regras do contrato, JB visa os vídeos gravados pelos beneficiados, quer dizer, os ganhos dos “juros do crédito”, que são pagos de volta ao banco em forma de filme. Assim JB dá um exemplo de como a circulação de crédito pode funcionar sem dinheiro. O investimento em dinheiro só foi necessário para o equipamento de vídeo. A ideia do projeto e o conteúdo das fitas de vídeo são valores não materiais que, baseados na confiança, mostram as visões sobre a vida de pessoas diferentes. Estas pessoas investiram seu tempo e fantasia para que suas visões sejam levadas de volta ao iniciador do projeto, respectivamente o Banco de Crédito, como quintessência da própria “experiência estética”. O equivalente justo é apenas o FilmeEmRede, um impagável ideal valor adicionável em experiência, em um próprio trabalho criativo feito em conjunto. Seguindo a ideia de uma obra não material coletiva e acentuando a concepção de crédito alternativo, JB entra em acordo com os participantes do CRÉDITO que o FilmeEmRede não poderá ser vendido, mas apenas presenteado. Yves Klein já falou sobre uma cultura invisível aos olhos, que está sempre presente: “O que é sensibilidade? Aquilo que existe fora da nossa pessoa, mas que de qualquer forma nos pertence. A vida não nos pertence, podemos comprá-la apenas com sensibilidade, que nos pertence. A sensibilidade é a moeda do universo, do espaço, da natureza que nos permite comprar a vida como matéria-prima. A imaginação é o suporte da sensibilidade! Levados pela imaginação alcançamos a vida, a verdadeira vida, que é arte absoluta.”[13]
Traduzido do alemão por: Ana Valéria de Souza Celestino
Revisão: Carmen de Souza Renner
Sobre a autora
Anotações
- Ir para cima ↑ O número sete está sempre presente (sete beneficiados, sete dias de prazo, sete fitas de vídeos por cada FilmeEmRede). Segundo o artista é um número arbitrário, que apesar do muitos significados esotéricos, psicológicos e históricos, vem apenas do número de dias de uma semana. (JB)
- Ir para cima ↑ “Der Autor des Werkes verdunstet nicht im Äther, sondern taucht in einer verdichteten Form als pluraler Autor, als Multi-Autor im Kunst-Werk wieder auf. Von der Schnittstelle im Dazwischen gewinnt das Werk nicht nur seine Gestalt, sondern auch seinen Sinn und seine Realität.” Paolo Bianchi, “Kunst ohne Werk – aber mit Wirkung. Was ist die Kunst an der Kunst” [Arte sem obra – mas com efeito. O que há de artístico na arte?], Kunstforum, vol. 152, out.-dez., 2000, p. 76.
- ir para cima ↑ Marion Strunk, „Vom Subjekt zum Projekt. Kollaborative Environments.“ [Do sujeito ao projeto. Ambientes colaborativos.], Kunstforum, vol. 152, out.-dez., 2000, p. 121.
- Ir para cima ↑ Apesar ou talvez por causa das intervenções manipulativas do artista como cortes, exclusões de cenas etc. a maioria dos beneficiados fica curiosa em saber como a intervenção artística vai transformar a sua filmagem.
- Ir para cima ↑ Marion Strunk, „Vom Subjekt zum Projekt. Kollaborative Environments“ [Do sujeito ao projeto. Ambientes colaborativos.], Kunstforum, ol. 152, out.-dez., 2000, p. 121.
- Ir para cima ↑ “das Schwinden der Künstlerautorität und die daraus resultierende Relativierung des Schöpfungsgedankens” – Cf. ibid., original Michel Foucault “Was ist ein Autor?” [O que é um autor?], em: Foucault Reader, DVA, Stuttgart, 1979.
- Ir para cima ↑ “neue, ungewöhnliche Wahrnehmungszusammenhänge schafft und dadurch […] Neues, Ungewöhnliches zu denken gibt.” – Felix Philipp Ingold, “Nach dem Autor fragen” [Perguntar pelo autor], em: Neue Züricher Zeitung, 21/22 de setembro de 1991, No. 219, p. 69. Idem (org.): Fragen nach dem Autor [Perguntas sobre o autor] e: Dialog mit dem Autor [Diálogo com o autor]. Ambos os volumes publicados pela Universitätsverlag, Constança, 1991.
- Ir para cima ↑ Dieter Mersch, „Ereignis und Aura, Radikale Transformation der Kunst vom Werkhaften zum Performativen“ [Evento e aura. Transformação radical da arte: do objeto para o performativo], Kunstforum, vol. 152, out.-dez. 2000, p. 101.
- Ir para cima ↑ www.kunstwissen.de
- Hochspringen ↑ O termo caracterizado por Stanley Milgram, em1967, para um fenômeno que há pouco foi novamente provado por cientistas norte-americanos (Holger Dambeck, “Das Jeder-kennt-jeden-Gesetz” [A lei do ‘todos conhecem todos’]).
- Ir para cima ↑ Ibid..
- Ir para cima ↑ Cf. Wikipedia.
- Ir para cima ↑ Yves Klein, 1959 em: Hannah Weitermeier, Yves Klein (1928-1962) – International Klein Blue, Benedikt Taschen Verlag, 1994, p. 52.